Trump Das tarifas ao plano para Gaza... | VEJA


Lá se vão três semanas de mergulho intenso no que será o segundo governo de Donald Trump na Casa Branca. Agora, mais até do que no primeiro mandato, ele parece jogar pôquer. Aposta alto, põe e tira as fichas da mesa, compra o que pode, ensaia quebrar a banca, arremessa tudo para o alto, finge blefar, mas não — e, em muitos casos, subverte as regras, namorando a virada de mesa. Trump, o jogador, não dá um minuto de sossego para a ansiedade global. A seu feitio, caminha no lugar-comum: cria dificuldades para vender facilidades. Houve estardalhaço com a guerra comercial deflagrada ao anúncio de tarifas contra produtos importados da China, México e Canadá, em movimento de tirar o fôlego, feito de sístoles e diástoles. Depois sugeriu fazer de Gaza um território de controle americano, de mãos dadas com Israel, em provocação mal dissimulada. O mundo de Trump não é para amadores — embora nem seja tão intrincado assim, dado o monocórdico desejo do republicano, prometido e anunciado na campanha, “de fazer os Estados Unidos grande novamente”.

Trump força os outros líderes mundiais a mudar suas estratégias, levando-­os à mesa. O primeiro movimento veio na forma de imposição de tarifas de 25% aos produtos importados do México e do Canadá, os dois principais parceiros comerciais dos Estados Unidos — juntos, os vizinhos somam quase 30% do fluxo comercial americano. Atônitos, Justin Trudeau, o premiê canadense, e Claudia Sheinbaum, a presidente mexicana, decidiram não pagar para ver e, rapidamente, demonstraram disposição em negociar temas que não guardam nenhuma relação com comércio exterior. Ambos se comprometeram a reforçar a segurança nas fronteiras para impedir a imigração ilegal e conter o tráfico de fentanil, a droga que se espalha com rapidez epidêmica nas grandes cidades americanas. O esforço diplomático renderia o adiamento da taxação por trinta dias. “Trump inaugurou o uso político da força comercial para intimidar e obter concessões de outros países”, disse a VEJA Chris Tang, professor de economia da Ucla, a Universidade da Califórnia em Los Angeles.


A personagem lhe trouxe algo não menos relevante: prestígio global notável para uma atriz brasileira de qualquer tempo — seus êxitos só encontram paralelo nos de sua mãe, a grande Fernanda Montenegro. A artista de 59 anos acumula elogios desde a estreia do filme no Festival de Veneza, em agosto de 2024. A jornada rendeu seu maior fruto até agora, no domingo 5, com a vitória no Globo de Ouro de atriz dramática, a primeira brasileira a alcançar tal façanha. “Ainda Estou Aqui a encontra na plenitude de sua inteligência emocional, na sua maturidade como atriz&rdquo, disse Salles a VEJA

O balé das duas maiores lideranças do planeta expõe uma interessante e irônica contradição: liberal na economia até o último de seus fios de cabelos alaranjados, Trump anda no avesso de suas convicções ao alimentar a sanha protecionista, de tributo em cima de tributo. É curioso notar que, no embate entre os grandões da geopolítica, o comunista Xi Jinping parece ir para o outro lado, como se fosse o campeão de mercado, o que evidentemente não é. Eis um dos efeitos do trumpismo: embaralhar as cartas. É possível haver, em futuro breve, alguma acomodação, pequenos recuos, mas Trump veio para complicar e não para explicar. A rigor, o que ele deseja é poder de pressão, dentro e fora de casa. “O objetivo final sempre gira em torno da imagem, ser temido e visto como eficaz”, afirma Rubens Ricupero, ex-embaixador brasileiro em Washington.



RECUO — A mexicana Sheinbaum (à esq.) e o canadense Trudeau, acuados: os vizinhos conseguiram adiar as taxações por trinta dias, mas temem pelo futuro

Por enquanto, a eficiência da guerra comercial tem sido fortemente questionada. Em todo o mundo, os mercados reagiram mal, com queda imediata no preço das ações de companhias americanas e com o dólar registrando altas expressivas. Analistas alertam especialmente para o risco da disparada dos preços dos alimentos, já que a maior parte dos produtos in natura consumidos pelos americanos vem do México, e da impossibilidade de a indústria americana dar conta de substituir as importações no médio prazo. “Não dá para ser autossuficiente em tudo”, afirma Ian Craig, da divisão de comércio internacional da EY no Brasil.

Outro efeito dado como certo é a desorganização das cadeias produtivas de empresas altamente integradas ao mercado global, que tiveram ganhos expressivos de competitividade importando componentes mais baratos. Gigantes da indústria americana, como as montadoras Stellantis, General Motors e Ford, têm fábricas ao sul e ao norte das fronteiras e podem ter os lucros diminuídos se forem obrigados a comprar — ou produzir — insumos nos Estados Unidos. O Instituto Peterson de Economia Internacional calcula que só as tarifas contra a China terão impacto negativo no PIB de mais de 100 bilhões de dólares até 2040. “Valerá o preço que teremos de pagar”, desdenhou Trump.



CHANCE — O líder chinês Xi Jinping: da briga pode brotar um acerto de gigantes

Do outro lado da alfândega, o cenário é mais preocupante. México e Canadá temem o freio econômico inevitável. Países da União Europeia aguardam com aflição os próximos desdobramentos, uma vez que Trump já anunciou adotar medidas protecionistas “significativas” contra os 27 membros do bloco. “A Europa, como uma verdadeira potência, terá que se fazer respeitar e, portanto, reagir”, respondeu o presidente francês, Emmanuel Macron. Trump não dá sinais de desistência, mas tampouco deixa claro até que ponto está disposto a avançar. “O pior resultado seria cumprir as ameaças”, afirma Roberto Azevêdo, ex-diretor geral da OMC. “Não é bom para os Estados Unidos e não é bom para o mundo.”

No Brasil, o governo ainda mede a forma como o tarifaço pode impactar a economia. O país importa mais do que exporta dos Estados Unidos e não está no rol das nações que levam a balança comercial americana para o vermelho (veja o quadro), mas o Planalto não descarta a possibilidade de retaliações pontuais, principalmente entre os produtos nacionais que enfrentam a concorrência americana no mercado externo, como o etanol. O presidente Lula foi ao ponto óbvio, para não deixar passar. Disse trabalhar com o princípio da reciprocidade se tarifas forem impostas e alertou para o fato de Trump governar por meio de “bravatas”. A ordem no Itamaraty, por ora, é a cautela. “Melhor ficarmos quietos, se não eles lembram que a gente existe”, riu um respeitado diplomata a VEJA.


FIM DE UMA ERA? - Negociações de Bretton Woods, em 1945: integração de mercados, forjada há oitenta anos, sob ameaça

Desde 2009, os Estados Unidos já não são o principal parceiro comercial brasileiro, mas as exportações para a maior economia do mundo giram em torno de 40 bilhões de dólares. Petróleo, aço e produtos agrícolas estão entre os principais itens negociados. No primeiro mandato de Trump, a indústria siderúrgica brasileira sofreu sanções e foi levada a rever o portfólio de clientes. A sanha tarifadora de agora, porém, é vista com algum otimismo, por abrir janelas. “Quando Trump taxou a China no passado, oportunidades comerciais para o agro brasileiro foram abertas”, afirma Luiz Carlos Carvalho, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). De forma semelhante, a situação atual pode favorecer a exportação de carne bovina, antes desfavorecida se comparada aos pares mexicanos e canadenses. “Acredito em um estreitamento na relação com os Estados Unidos, pelo menos no curto prazo”, diz Roberto Perosa, chefe da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes.

Embora nenhum outro presidente americano tenha declarado tanto amor pelas tarifas — “a palavra mais linda do dicionário”, disse Trump —, convém não tratá-lo como o único responsável pelo fechamento de mercados. Desde a crise financeira de 2008, o mundo enfrenta um processo de “desglobalização”, intensificado pela pandemia de covid-19. Nessa toada, o comércio internacional corre o risco de retroceder oitenta anos no tempo. Há exatas oito décadas, o acordo de Bretton Woods inaugurava uma nova era mercantil. Além de criar instituições multilaterais como o FMI e o Banco Mundial, o tratado fez da interdependência entre nações uma âncora da paz entre os povos. Sob a atual gestão da Casa Branca, sai de cena a cooperação com “inimigos” e entra o balcão de negócios. “É um retorno à lógica de autossuficiência do século XIX, fortemente marcada pelo nacionalismo”, diz o economista Conor O’Kane, pesquisador da Universidade Bournemouth. Nesse caminho, não é impossível que Estados Unidos e China acabem por costurar algum casamento econômico, os gigantes de costas para o restante das nações.

FORÇA FEMININA — Eunice Paiva na vida real (à dir.) e na ficção (à esq.): a ativista foi exemplo de resiliência


Não se deve, tudo somado, e por cautela, atirar ao lixo os ensinamentos históricos. Berço do liberalismo econômico, os Estados Unidos foram os que mais promoveram e se beneficiaram da circulação de mercadorias e ideias. A liderança em inovação tecnológica, serviços e indústria cultural permitiu que a maior das economias seguisse se desenvolvendo, ainda que tenha comprado muito mais do que vendeu. Até há pouco tempo, o enorme déficit da balança comercial, que chegou a bater quase 1 trilhão de dólares no ano passado, era encarado como um mal menor diante das oportunidades geradas. Não mais. “No nível doméstico, ele ainda fala em reduzir impostos, cortar gastos do governo, desregulamentar a economia, mas, do ponto de vista internacional, é o presidente mais antiliberal do pós-guerra”, diz Robert Shapiro, professor de ciência política na Universidade Stanford, ao reafirmar a contradição que ecoa como nunca antes.

Típicos de um jogador impulsivo, os lances de Trump assustam. Não há garantia de promoção de crescimento econômico e de geração de empregos dentro das fronteiras americanas, como prometido. No aspecto internacional, rompem a confiança. Cacifado, Trump sabe ter fichas para queimar, mas elas não são infinitas. Namora uns e afasta outros. Bagunça o pano verde a não mais poder, mas convém não tratá-lo como um alucinado irresponsável. Ele briga porque pode. Vale uma antiga piada do historiador britânico Bernard Lewis (1916-2018), lembrada em um editorial recente do Wall Street Journal para ilustrar a desequilibrada batalha de tarifas iniciada pela Casa Branca: “É arriscado ser inimigo dos Estados Unidos, mas ser seu amigo pode ser fatal”. O jornal americano ainda classificou o lance como a “guerra comercial mais estúpida da história”. Trump ganhou algumas rodadas até aqui, mas a roleta apenas começou a girar — Pequim que o diga. Impossível saber a esta altura quem poderá sagrar-se vencedor. Façam suas apostas.


Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930