Cada passo do evento é milimetricamente coordenado pelo cerimonial, para evitar ao máximo as inescapáveis saias justas — e há muitas em potencial. Milei vive trocando farpas com os europeus, Biden e Xi não se bicam (embora tenham anunciado uma reunião a dois em outra cúpula, no Peru, antes do Rio) e o indiano Narendra Modi, que quer fazer de seu país uma força econômica e compete com Lula por protagonismo mundial, também prefere distância do chinês, com quem tem pendengas antigas. Ainda bem que o presidente russo, Vladimir Putin, outro farol de desafetos, declinou do convite — mas só porque tem um mandado de prisão por crimes de guerra emitido pelo Tribunal Penal Internacional no âmbito de um tratado do qual o Brasil é signatário.
O ponto alto da presidência brasileira do G20 é o encontro de líderes, mas, ao longo deste ano, a preparação da cúpula exigiu 42 eventos oficiais no Rio, além de outros 104 paralelos, que mobilizaram mais de 120.000 participantes, sendo 270 ministros e vice-ministros estrangeiros e seis vencedores do Prêmio Nobel, segundo contagem da prefeitura do Rio. Para receber esse batalhão, a cidade precisou de ajustes. O aeroporto do Galeão foi reformado, e o Museu de Arte Moderna, sede da reunião e ícone da arquitetura modernista dos anos 1940, passou por uma repaginada de 30 milhões de reais, com direito a um sistema de monitoramento instalado nos arredores. A atenção foi redobrada sobretudo depois da morte do homem que detonou explosivos na Praça dos Três Poderes. A contrapartida: cerca de 600 milhões de reais injetados na economia carioca, segundo projeção do estudo “G20 em Dados”, elaborado pelo governo Eduardo Paes. A rede hoteleira carioca espera uma média de ocupação de até 95%, sobretudo nos hotéis de luxo da Zona Sul.
Diplomatas dos países envolvidos começaram a desembarcar na semana anterior à cúpula, com a missão de aparar arestas e elaborar um rascunho de declaração final. Antes disso, as diferentes visões dos países do G20 sobre as guerras em andamento permearam todo o primeiro semestre de reuniões preparatórias. De um lado, Estados Unidos e Europa pressionam para uma manifestação enfática condenando a Rússia pela invasão à Ucrânia, o que Moscou, evidentemente, não aceita. De outro, países em desenvolvimento demandam que qualquer menção aos atos terroristas do Hamas contra Israel seja agregada a uma referência à operação militar israelense contra os palestinos. Os diplomatas que tocam essas reuniões paralelas são chamados de sherpas, nome dado aos guias nepaleses indispensáveis nas trilhas difíceis e íngremes do Himalaia. Preocupado em emplacar suas propostas preferenciais, o governo brasileiro fará pressão para que a menção aos conflitos em marcha seja simples e sucinta no texto final. Segundo o sherpa do Brasil, Maurício Lyrio, “negociação de paz não é tema da cúpula”.
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Além das divergências em questões externas, a reunião do G20 acontece em um momento em que vários poderosos passam por sérios dilemas internos. A Alemanha, mais rico dos países do bloco europeu, vai trocar de governo — o chanceler Olaf Scholz perdeu maioria e já anunciou eleições antecipadas para fevereiro, em meio a um pesadelo econômico que inclui aumento do desemprego, alta da inflação e energia cara por causa da guerra na Ucrânia (os alemães importavam gás e petróleo da Rússia). O francês Emmanuel Macron, que antecipou uma eleição sabidamente perdida e agora pena para governar, acaba de ter rejeitada na Assembleia Nacional a proposta de orçamento para o ano que vem, sob o peso de uma dívida pública que representava, no fim de junho, 112% do PIB. E Biden, detentor do cargo mais poderoso do planeta, faz de conta que ainda tem voz na sua triste condição de “pato manco”, como os americanos chamam o presidente enfraquecido à beira de perder o cargo. O Brasil chegou a abrir a possibilidade de que Trump viesse ao encontro, mas a conversa não progrediu.
Com a participação de dezenove países e da União Europeia, o G20 nasceu em 1999, quando, capitaneadas pelos Estados Unidos, nações dos quatro cantos do globo aderiram à globalização. Batizado como “o maior fórum para a cooperação econômica do mundo”, é uma versão expandida do G7, bloco dos países mais industrializados, e concentra 80% do PIB global (veja o gráfico). Sempre teve como pilar o pragmatismo, aproximando ministros da economia e presidentes durante as crises cambiais que chacoalharam países como Brasil, México e Rússia no final do século XX. O encontro de chefes de Estado tornou-se anual sob o impacto de outra crise, o estouro da bolha imobiliária americana, em 2008 — especialistas afirmam que o entrosamento do grupo foi fundamental para estabilizar o sistema financeiro diante do colapso imobiliário, um esforço coletivo que consumiu 4 trilhões de dólares. Mais recentemente, em 2021, o G20 se mobilizou em prol da criação de um imposto global mínimo de 15% sobre os lucros das multinacionais.
Mas, nos últimos anos, a cooperação escasseou, eclipsada por fissuras geopolíticas cada vez mais visíveis e profundas. “Hoje, a insatisfação com a globalização é generalizada”, afirma Stewart Patrick, do Programa de Ordem Global e Instituições do Carnegie Endowment for International Peace, de Washington. “Assim, os países passaram a buscar soluções próprias.” As reuniões de cúpula são sempre uma chance de o G20 ajudar a equacionar os imensos desafios do presente e garantir sua relevância, e o encontro do Rio não será diferente. Na babel geopolítica do século XXI, diálogo é artigo de primeira necessidade — que, infelizmente, anda em falta nestes dias.
O clima em pauta
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Outra reunião de cúpula está acontecendo em Baku, a capital do Azerbaijão, mais conhecida dos brasileiros pela corrida anual de Fórmula 1: a 29ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP29). Esperam-se dela decisões cruciais para o futuro do planeta, mesmo se ressentindo da ausência de líderes: não estiveram na abertura, na segunda 11, nem o chinês Xi Jinping, do país campeão em emissões de combustíveis fósseis, nem Joe Biden, do vice no ranking dos poluidores, nem os mandatários da União Europeia, na terceira posição. Aguardado como um dos destaques pela posição estratégica da Floresta Amazônica, o presidente Lula cancelou a ida por recomendação médica. Javier Milei, da Argentina, que qualifica a crise climática de “mentira socialista”, não foi e ainda mandou a equipe técnica presente voltar para casa no terceiro dia. Fora da lista, o presidente eleito Donald Trump, outro cético, paira como sombra no encontro. Ele quer reduzir o papel dos Estados Unidos no combate às emissões de carbono e cunhou o slogan de campanha “Drill, baby, drill” (perfure, baby, perfure) para defender a expansão da prospecção de petróleo.
O objetivo central da COP29 é a criação de mecanismos para financiar a implantação de tecnologias limpas em países em desenvolvimento, essencial para manter de pé o Acordo de Paris, que limita o aquecimento médio global a 1,5 grau em relação ao período pré-Revolução Industrial. Os principais bancos multilaterais de desenvolvimento anunciaram a elevação dos recursos nesse sentido, de 75 bilhões para 120 bilhões de dólares até 2030. Quanto às emissões, Brasil e Reino Unido divulgaram metas ambiciosas — 59% a 67% o primeiro, 81% o segundo — até 2035. Para os críticos, a realização da COP29 no Azerbaijão — repetindo a escolha duvidosa de Dubai para a COP28 — é como colocar a raposa no galinheiro, já que o país vive de exportar petróleo e gás. Para piorar, tem péssimo histórico democrático. Na presidência desde 2003, Ilham Aliyev, aliado fiel do russo Vladimir Putin, reprime com violência qualquer dissidência e, há um ano, expulsou sumariamente mais de 100.000 pessoas da região de Nagorno-Karabakh, que disputa com a vizinha Armênia. Não há reunião de cúpula — nem Grande Prêmio — que consiga polir essa imagem.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919